domingo, 10 de abril de 2005

Desde que Otar partiu



10/04/2005


Um filme francês dirigido por Julie Bertucelli que estréia aqui seu primeiro filme de ficção.
Conta a história de três gerações de mulheres vivendo na Geórgia, a matriarca Eka (protagonizada pela excelente atriz Ester Gorintin), sua filha Marina e sua neta Ada, uma jovem ansiosa por novas experiências de vida. Eka vive à espera das cartas e telefonemas que seu filho Otar, um médico que foi viver de operário na França lhe envia de tempos em tempos. Chegam notícias de Paris para Marina e Ada sobre Otar e elas têm que decidir como contar à mãe.
É um filme muito bonito que trata em primeiro plano das relações familiares e humanas, do eterno conflito de gerações. Em uma situação mais geral mostra a nós ocidentais habituados aos modus vivendi do capitalismo, com suas vantagens e desvantagens, um pequeno panorama do que é a vida em uma ex-república soviética.


Quando o filme começa temos impressão que se trata de um filme da época dos anos 60. As máquinas são antigas, os automóveis, verdadeiras caixas de latão retorcido, tudo tem um certo ar de mofo. Nos surpreendemos em ver que é um filme recente e que as pessoas ainda vivam assim em alguma parte do mundo dito civilizado. Os serviços públicos são precários, falta água, o telefone não funciona, o correio é extremamente moroso e burocrático. O desemprego é generalizado, o trabalho informal cresce (alguma semelhança?) e os empregos oficiais têm salários miseráveis, haja vista a decisão de Otar em trabalhar de operário na França, renunciando à sua profissão.
Embora o assunto seja pouco abordado no cinema uma vez que os países recém saídos do regime socialista têm uma produção cinematográfica incipiente, em parte explicada pela situação caótica de adaptação pela qual estão passando, esta questão mereceria uma atenção maior dos países ocidentais. Não vemos nos jornais como vivem os órfãos do comunismo. Recentemente eu vi na Mostra Internacional um filme sobre os catadores de lixo na Polônia e os novos mendigos do “capitalismo libertador”.

O mundo ocidental fecha os olhos para essa situação incômoda e prefere voltar a atenção aos eternos conflitos do Oriente Médio. O bloco comunista se não vivia bem antes, pior agora. O que vemos com esses filmes são países passando por uma situação social caótica e desalentadora. Os idosos e as pessoas de meia idade já não têm suas necessidades básicas de saúde e infra-estrutura asseguradas pelo Estado, uma vez que têm que competir em um novo mercado de trabalho regido por códigos que desconhecem. Por outro lado esse mesmo mercado se aproveita da falta de experiência e competitividade da população jovem, vivendo uma realidade com a qual estão se deparando pela primeira vez, sem o background das gerações anteriores, e impõe as regras do capitalismo selvagem, explorando a mão de obra barata e outra atrocidades que conhecemos bem. Daí o êxodo populacional e a explosão dos conflitos étnico-sociais.

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A partir daqui vou comentar sobre o desenrolar do filme e se você é daqueles pretende assistir sem estragar a surpresa (embora ela não seja um ponto crucial na trama e sim o que vem a partir dela) não leia por favor.

A notícia que chega de Paris para a filha e neta de Eka é que seu filho sofreu um acidente de trabalho (caiu de um andaime) e morreu. Mãe e filha ficam sem saber como dar a notícia à velha senhora, que vive contando os intervalos entre cartas e telefonemas que recebe dele. Resolvem então manter a farsa e continuar escrevendo cartas como se fosse o filho. O ponto crucial nessa relação é a questão ética: Estão certas de poupar a mãe do sofrimento do filho morto mantendo uma mentira, uma ilusão? Num certo momento Ada questiona sua mãe sobre o porquê dessa decisão, Uma cena forte de exposição dos demônios de cada um.
No fim do filme Eka resolve ir a Paris visitar o filho. Marina e Ada a acompanham, já de passagem comprada e com visto obtido, sem desfazer a mentira. Ela finalmente descobre por si própria o ocorrido e o que se segue é a grande surpresa do filme, a reação dela diante do fato. Ela sai grandiosa e dá um exemplo às suas descendentes. Uma lição de vida, de sabedoria, de humanidade. Eka nos ensina como passar pela vida nobremente e o quanto a experiência e idade são fundamentais na formação do caráter da pessoa.